KOMPANHIA
Kompanhia do Centro da Terra
04.07.1989A Kompanhia Teatro Multimídia de São Paulo (Kompanhia do Centro da Terra) é uma associação privada sem fins lucrativos, fundada em 1989 por Ricardo Karman com finalidade de produzir e apresentar seus espetáculos, apoiar e incentivar artistas emergentes, projetos independentes e grupos que dialogam com sua produção e pesquisa. Em 2001 inaugurou o espaço cultural CENTRO DA TERRA e abriga desde 2008 a escola de Arte GRÃO DO CENTRO DA TERRA.
A LINGUAGEM DA KOMPANHIA
Escorada em diversos prêmios acumulados ao longo de sua trajetória de três décadas, a paulistana Kompanhia do Centro da Terra tem assinado trabalhos que se caracterizam pela combinação de diferentes linguagens cênicas e arte-tecnologia. São montagens multimídia interativas, transpostas para espaços não convencionais e que estimulam um diálogo provocativo com o território urbano. Ao ser criada no final da década de 1980, logo se tornou uma significativa interferência na cena teatral brasileira.
Viagem ao Centro da Terra (1992) se passava dentro de um túnel inacabado com um quilômetro de extensão. Com itinerário de 130 km, A Grande Viagem de Merlim (1995) incluía cenas em um aterro sanitário, lagoa e um teatro desativado. O pedagógico Aguáh - O Espírito das Águas (2009-2011) transcorria em duas represas de São Paulo e uma reserva florestal. Destinado a pais e filhos, O Ilha do Tesouro (2005-2016) acontecia em labirintos criados em um terreno baldio e nos corredores e subsolos de um teatro. Nestas e demais produções, havia uma articulação de meios, linguagens e expressões artísticas como teatro, artes plásticas, animação computadorizada, video, performance, expedições exploratórias.
Idealizador do grupo, o arquiteto Ricardo Karman teve uma caminhada singular. Sua ligação com as artes começou em 1977 na FAU - Faculdade de Arquitetura da Universidade de São Paulo, influenciado principalmente por professores como Flávio Império (cenógrafo), Flávio Motta (historiador da arte e pintor), Décio Pignatari (semiólogo e poeta concreto) e Haron Cohen (arquiteto). Estreou como clarinetista em Um Dibuk Para Duas Pessoas (1983), de Iacov Hillel. Foi assistente de direção de Ulysses Cruz (1984/85) e do mago Antunes Filho no CPT - Centro de Pesquisa Teatral (1985-89), chegando a atuar em Xica da Silva (1987). Trabalhou com outra legenda, o diretor José Celso Martinez Correa (1990/91), em Os Mistérios Gososos (1994). Em Londres (1987), estudou direção teatral na British Theatre Association, onde estagiou com o encenador Peter Gill no National Theatre of Great Britain. Em 2001 ele inaugurou o subterrâneo Teatro do Centro da Terra, localizado no bairro paulistano de Perdizes.
Sua estreia na direção aconteceu em 525 Linhas (1989), de Marcelo Rubens Paiva, marco inicial da Kompanhia Teatro Multimídia de São Paulo, mais tarde rebatizada Kompanhia do Centro da Terra. Tratava-se de uma ousada criação experimental multimídia com videoinstalações, que ocupou o Aeroanta, na época uma prestigiada casa paulistana de shows de vanguarda. Ali ele firmou duradoura parceria profissional com o artista multimídia Otávio Donasci, conhecido pela concepção das vídeo-criaturas, um ser híbrido, metade gente e metade máquina (corpo de ator e rosto de vídeo).
A partir daí, Karman segue uma vertente de pesquisa bastante clara, interligando mídias, linguagens e suportes hibridizados no espaço teatral. Passa a adotar o toque físico e a interatividade. Cria o conceito do público-herói. Em seu teatro, o espectador não está confinado à condição de observador passivo, contemplativo e receptor de informações. A ele é oferecido uma vivência sensorial, emotiva, intelectual, tátil, auditiva. O público se torna o próprio objeto da pesquisa. Um participador-protagonista.
Um dos fundamentos que amparam o conceito do público-herói vem da teoria esculpida pelo mitologista americano Joseph Campbell, na qual as histórias de heróis e suas fábulas se definem sempre pela mesma estrutura – separação, iniciação e retorno. Ou seja, o herói deixa o conforto de seu mundo conhecido (casa, família, aldeia, referências, cultura, conceitos, língua) e parte em direção ao ignorado e inexplorado. Então percorre um caminho cheio de obstáculos, provas e experiências individuais, momento em que se encontra inseguro, vulnerável e questionando suas convicções. Por fim, supera os desafios e, vitorioso, retorna ao ponto de partida com mais autoconhecimento, fortalecido e transformado, quando compartilha com sua aldeia todo o aprendizado adquirido.
Com base nesses estudos, Karman transcendeu a mera representação de um texto no palco, modificou o papel da plateia e adotou a metáfora como princípio. Tal qual o herói de Campbell que vivencia uma prática transformadora, o público é um alguém especial que sai de seu território habitual, mergulha num universo realmente desconhecido, passa pela trajetória de perplexidade e superação diante de ações que lhe são propostas e finaliza a aventura metamorfoseado. A um só tempo a experiência concilia realidade e alegoria.
De forma pensada, ele interveio no eixo dramático. Se na estrutura dramática do teatro, o conflito ganha vida no jogo entre os atores, em suas obras o espectador se torna polo do conflito, em sua relação com todos os elementos à sua volta (espaços, intérpretes, instalações interativas). Embalada na metalinguagem, a dramaturgia se constrói junto à audiência, que virou figura principal e está no centro do experimento artístico. Destituído do protagonismo que lhe cabe em uma encenação convencional, o ator assume uma função performática e desafiadoramente interativa.