KOMPANHIA
Sarau Noites na Taverna
2010 a 2014Em uma taverna charmosa, com clima notívago e banhada por luz baixa e intimista, a poesia rolava solta toda última quarta-feira do mês ao longo de quatro anos. Tudo transcorria em um espaço construído com lascas de madeira crua, mesas e banquetas rústicas, vizinho ao teatro do Centro da Terra. O local, por sinal, fazia parte do cenário da peça O Ilha do Tesouro, da Kompanhia do Centro da Terra.
O título do evento, gratuito e projetado para aproximadamente quarenta espectadores por sessão, guardava relação com a proposta inicial. No caso, uma homenagem ao livro homônimo de Álvares de Azevedo, reunião de contos macabros e histórias de amor, lascivia e morte protagonizados por personagens devassos, apaixonados por homens proibidos, mulheres perdidas, virgens.
Esta atmosfera romântica do século XIX foi revisitada pelo diretor e anfitrião Ricardo Karman, que recebia a plateia, dava o tom da vigília literária e resgatava a importância da palavra falada. Ele evocava aspectos teóricos da poesia, fugindo dos estereótipos e apoiando-se em ensinamentos de Ezra Pound, Décio Pignatari, Mário Faustino, Ferreira Goulart e os irmãos Campos, entre outros. Escorado nesses mestres, buscava se aprofundar na produção artística de grandes escritores e poetas, notadamente os brasileiros. A finalidade da noitada era proporcionar uma experiência singular e descontraída de vivência poética para pessoas que, embora pudessem até não ter familiaridade com o universo da poesia, estivessem dispostas a desvendá-lo e compartilhá-lo.
Como no romance de Azevedo, todos se encontravam ali para beber, conversar e ouvir. Durante noventa minutos, trovadores, aspirantes a e simpatizantes recitavam poesias, letras de músicas, textos curtos de sua própria autoria ou escolhidas de um cardápio poético especialmente elaborado por Frederico Barbosa – para quem não tinha repertório exclusivo ou providenciado algo de casa, muitos volumes ficavam à disposição em cima das mesas. O público interagia e se envolvia totalmente. Era corriqueiro acontecer várias surpresas, com muitos se revelando verdadeiros artistas no instante de declamar poemas inteiros de memória ou simplesmente cantar.
Em cada encontro se lia uma página de Galáxias, a obra experimental escrita por Haroldo de Campos, um dos maiores nomes da Poesia Concreta brasileira. O sarau escorria embalado por música ao vivo (baixo, guitarra e percussão), sob o comando de Sergio Basbaum, músico e doutor em Comunicação e Semiótica, que também derramava poemas e tecia comentários eruditos inesperados. Não tinha lista prévia nem ordem de inscritos. A cada momento, quem sentisse o impulso de recitar ou articular uma divagação literário-filosófica, bastava puxar um cordão sobre sua mesa que um sino tocava anunciando o próximo participante.
No epílogo, anunciado por um despertador previamente programado para indicar o horário de encerramento, um voluntário apresentava um improvisado poema mesclado de trechos de tudo o que havia rolado naquela noite – uma “sarata”, espécie de ata. Apaixonado por poesia, e poeta amador com poemas já publicados, Karman definia o sarau como “noites poéticas e autóctones, autenticamente paulistanas”. Um dos muitos que, surpreendentemente, a cidade de São Paulo costuma abrigar. Noites na Taverna era mais uma dessas janelas de sensibilidade abertas em uma metrópole embrutecida.